Em cima: foto de Brian W. Ferry, tirada com uma máquina avariada
Em baixo: autor desconhecido
Em baixo: autor desconhecido
"(...) Então, revelando uma de minhas “qualidades”, dissera ser capaz de “compreender as pessoas”. Conseguiria enxergar o interior delas. Recebi reações de protesto. Como assim, “compreender as pessoas”? Quer dizer, como assim, me compreender? O conteúdo do protesto então carrega-se de objeções, e não objeções quaisquer, mas objeções igualmente sinceras: “Não és prepotente, arrogante e presunçoso” por declará-lo? Queres me tornar o teu rato de laboratório, queres me transformar num objeto de investigação? Queres, afinal, negar-me a minha humanidade?
É um temor generalizado de uma necessidade generalizada. Isto é, se alguém me entende, ou me compreende, isso lança dúvidas sobre a necessidade bastante humana de sentir-se ilimitado. Algo bastante grave: o “sentir-se ilimitado” parte da própria recusa da morte. É a “sensação oceânica” de que fala Freud, referindo-se à religião. E qual o efeito fundamental da religião? Neutralizar-nos e nos separar da morte, da finitude absoluta, subtraindo-nos dela e tornando-nos imunes por uma via ideal – vida eterna, reencarnação, pertencimento a algo maior, extraterreno, em uma palavra, ilimitados. O que não se restringe à religião, mas realiza-se também em qualquer atividade simbólica. Trata-se de transcender a própria limitação e a própria finitude. “Ilimitado” anda de mãos dadas com indeterminado, que suscita liberdade. Mas se “entendes” alguém, mesmo se a “compreenderes”, tacitamente o compreendido sente-se “limitado”. A compreensão de si lhe acomete como uma prova da limitação da extensão de si; choca-o como se o reduzisse a um cálculo preciso de sua amplitude; profana-o como uma declaração obscena de sua finitude e limitação humanas.
O compreendido então sente-se nu. Ele sente-se violado, usurpado pelo compreensivo; tudo se passa como se este detivesse um poder absoluto, tirano, sobre o compreendido. Pois a incompreensão é, de certa forma, uma garantia de nossa integridade frente a outra pessoa. São as fronteiras do “Eu”, cujo mistério converte-se numa garantia da autoestima individual, isto é, em um valor do qual depende a própria afirmação individual, o próprio bem-estar. É como se, afinal, o indivíduo precisasse manter-se destacado de outrem e recluso em um núcleo distante das fronteiras que o separam dos outros e de todo o mundo externo; fronteiras que são, afinal, o horizonte que a coletividade pode enxergar. Isto é particularmente óbvio em um contexto obscuro, em que vivemos perseguidos e atormentados em cada e a todo instante pela frustração e pela traição do exterior.
É o medo da maldade. O medo de fornecer chaves a um estranho; e quando está em jogo o mais íntimo de si, tememos dar chaves até a nós mesmos. Nos refugiamos de nossa própria consciência o tempo todo, a mente luta consigo própria; não raro a consciência se perturba e se cansa da própria presença. Como, então, inserir um microscópio no cerne do próprio coração, e convidar outros a perscrutá-lo? É o fim. É a morte.
Portanto, não se pode entrar nestas fronteiras. Mas para cometer a invasão e consumar esse crime ontológico, basta lançar um olhar: a fronteira é obscura; lançar luz em seu interior é como forçar uma greta em um biombo e vigiar criminosamente um corpo completamente despido – mas pior, pois ali está nu o mais íntimo de si, a integridade, o núcleo de tudo o que se é, e o que se sente, e se pensa, e se intui, e se espera ser.
O indivíduo compreendido não pode, afinal, aceitar sua “finitude”. Algo precisa ser feito. A insatisfação intolerável oriunda dessa consciência converte-se em culpa, e a culpa é lançada sobre aquele que compreende. Havendo um culpado, tudo se passa como se parte do mistério, isto é, da infinitude, fosse restituída. Mas há algo além. Mesmo se, contra todas as suas resistências, o compreendido acreditar em sua finitude, mesmo se a contra gosto ela lhe for indiscutível, então não bastará a exteriorização da culpa. Sua purificação demandará algo mais. Logo, a culpa adquire uma nova dimensão e tudo se passa como se o compreendido não fosse limitado, mas como se o compreensivo lançasse a finitude sobre ele, como uma maldição. “Ela não existia em mim, não preexistia, não fazia parte de mim; foi ele que me tornou assim. Ele não abriu meus olhos para o detestável; ele incutiu o detestável em mim.” Então, o compreendido sente raiva. E, com sua raiva, expurga o sofrimento da finitude. Odiando aquele que o compreendeu eu anulo a fonte da minha finitude e conservo a extensão de mim mesmo, e meu mistério, e minha integridade. Odiando-o, posso continuar senhor de mim mesmo.
E assim, mesmo se nobre, sincero, terno, bondoso, positivo; mesmo se repleto de possibilidades de satisfação e engrandecimento, o ato de compreensão acaba instigando na verdade os fantasmas que atormentam o compreendido.
Porém, ao mesmo tempo, precisa-se ser compreendido. Há poucas aspirações, impulsos, seduções mais intensas do que ser compreendido. Quando compartilhamos coisas caras com outrem, é a compreensão que se busca; é o reconhecimento externo do valor de algo de si; é, em uma palavra, cumplicidade. O indivíduo quer se ver refletido; ele quer ver sua vida vivendo fora de si, e ter assim comprovada a sua infinitude. A cumplicidade surge à mente como a própria solução do problema ontológico. A compreensão amplifica o ser humano. Ela o torna imortal. Ele precisa desse conforto, dessa segurança; de que ele não é o único que vaga só; que pode segurar em uma mão e amparar-se na escuridão adentro. Ademais, o indivíduo é incompleto e por ser incompleto não pode insular-se. Insulado, ele sofre o vazio ontológico, a solidão dilacerante. Mas o outro é vil; ou assim se acredita. Então, como pode ser diferente? A obscuridade persiste. Preciso de luzes, preciso de apoio, mas aqueles que podem fornecê-los mentem – e precisam mentir, pois também temem que eu minta, e os traia e os use. Assim, a compreensão produz seu oposto. Em vez de representar a vida fora de si, assume a forma do próprio espectro da morte.
Então, decorre que nada é mais terrível do que a solidão completa… salvo ser compreendido. E o amor torna-se aversão e rancor. Nossa grande felicidade se transforma na fonte dos maiores tormentos. E passa-se a evitar precisamente o que mais se precisa. E me afasto de quem amo; e me aproximo de quem não me ama, e não me compreende, pois assim estou seguro do pior – embora infeliz e incompleto.
Tudo seria diferente se fossemos, também, um cúmplice do compreendido. Se o tesouro a nós entregue, ainda que sem querer, fosse ampliado e retornasse ainda mais rico ao compreendido, e assim reciprocamente. Este é, em uma palavra, o amor que a humanidade busca. É o objetivo tácito da cultura, da sociabilidade; a razão ulterior de indivíduos associarem-se em sociedade. Essa amizade, ou melhor, essa cumplicidade, essa oposição complementar mutuamente benéfica entre consciências distintas, é o objetivo da mente e da sociedade incompleta e, como os esporos de vida em sua perseverança desesperada no vasto universo hostil, consiste em uma luz fugaz, distante e frágil, tão improvável como a redução parcial da quantidade de entropia no cosmos. Espera-se, contudo, que assim como eventualmente operam-se milagres em frações dos corpos celestes e a entropia cede e diminui momentaneamente, criando-se casulos de equilíbrio e harmonia dos quais surge a própria vida, espera-se que tal cumplicidade, igualmente improvável, seja de alguma forma realizável."
Texto de Fernando Baptista Leite, blogger brasileiro
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