segunda-feira, 25 de março de 2013

Querida rapariga, o amor é masoquista


o amor é masoquista


O amor é masoquista.
Esses gritos, essas queixas, essas suaves inquietações,
esse estado de angústia dos apaixonados,
esse estado de expectativa, esse sofrimento latente,
subentendido, apenas manifestado,
essas mil e uma preocupações acerca do ser amado,
essa fugacidade do tempo, essas susceptibilidades,
essas alternâncias de humor, essas divagações,
essas criancices, essa tortura moral
em que a vaidade e o amor-próprio se encontram em jogo,
a honra, a educação, o pudor,
esses altos e baixos do tónus nervoso,
esses desvarios da imaginação, esse feiticismo,
essa precisão cruel dos sentidos
que chicoteiam e que rebuscam,
essa queda, essa prostração,
essa abdicação, esse aviltamento,
essa perca e essa recuperação perpétua da personalidade,
esses embaraços, essas palavras, essas frases,
esse emprego do diminutivo, essa familiaridade,
essas excitações nos contactos,
essa tremura epiléptica, essas recaídas sucessivas e
multiplicadas, essa paixão cada vez mais perturbadora,
tempestuosa e progressivamente devastadora
até à completa inibição,
ao completo aniquilamento da alma,
até à atonia dos sentidos,
até ao esgotamento do tutano,
ao vazio do cérebro,
até à secura do coração,
essa necessidade de prostração, de destruição,
de mutilação, essa necessidade de efusão,
de adoração, de misticismo,
essa insaciabilidade que leva a pedir auxílio à hiper-irritabilidade
das mucosas, ás divagações do gosto,
às desordens vasomotoras ou periféricas
e que apela para o ciúme e para a vingança,
para os crimes, para as mentiras, para as traições,
essa idolatria, essa melancolia incurável,
essa profunda miséria moral,
essa dúvida definitiva e pungente, esse desespero,
todos esses estigmas não constituem porventura os próprios sintomas do amor,
segundo os quais se pode diagnosticar
e seguidamente traçar com mão firme
o quadro clínico do masoquismo?



Blaise Cendrars
moravagine
trad. e pref. Ruy Belo
livros cotovia
1992




fragmento de carta para o jovem codignola


Querido rapaz, sim, claro, vamos encontrar-nos,
mas não esperes nada desse encontro.
Quanto muito, mais uma decepção, mais um
vazio: daqueles que fazem bem
à dignidade narcisista, como uma dor.
Aos quarenta anos sou como era aos dezassete.
Frustrados, o homem de quarenta anos e o rapaz de dezassete
podem, decerto, encontrar-se, balbuciando
ideias convergentes, sobre questões
separadas por dois decénios, uma vida inteira,
mas que aparentemente são as mesmas.
Até que uma palavra, saída das gargantas hesitantes,
paralisada de pranto e vontade de estar só -
lhes revele a disparidade sem remédio.
E, ao mesmo tempo, terei de fazer de poeta
pai, e refugiar-me na ironia
- que te embaraçará: porque o homem de quarenta anos
é mais alegre e mais jovem do que o rapaz de dezassete,
sendo já senhor da sua vida.
Para além desta aparência, deste disfarce,
nada mais tenho a dizer-te.
Sou avarento, o pouco que possuo
está bem fechado neste meu coração diabólico.
E os dois palmos de pele entre a face e o queixo,
por baixo da boca torcida de tanto sorrir
de timidez, e o olhar que perdeu
a sua doçura, como um figo que azedou,
parecer-te-iam o retrato
fiel dessa maturidade que te faz sofrer,
uma maturidade não fraterna. De que pode servir-te
alguém da tua idade - mas entristecido
na magreza que lhe devora a carne?
O que ele deu, está dado, o resto
é árida piedade.




Pier Paolo Pasolini
poemas
de «poesia in forma di rosa»
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005




Artwork by Urs Stooss

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